segunda-feira, 19 de março de 2018

Considerações sobre o fim do povo brasileiro como possibilidade



Parece que a cada dia que passa desde o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes o episódio se torna mais e mais revelador da profundidade e do caráter irreversível da crise brasileira. Dentre tantos fatos e tendências relevantes me ocorre citar o que me parece ser o mais significativo: o caráter das manifestações públicas aos assassinatos caracterizados pela repulsa a um ato bárbaro, covarde e inaceitável. E ai reside uma das faces mais interessantes da atual crise porque revela o perfil inédito das manifestações populares. Vimos como no caso do julgamento do ex-presidente lulla no TRF-4 em Porto Alegre, em janeiro o ex-ministro Zé Dirceu, apesar de ter convocado a militância (que compareceu em peso) para “luta e combate” absolutamente nada aconteceu além de um tipo de compartilhamento coletivo de derrota sem qq efeito prático e esvaziado de sentido político. Trata-se de mais um episódio típico da assim chamada “conciliação” de classes praticada desde sempre pelo lullismo. Outro tipo de manifestação popular foram as motivadas pelo protesto e/ou luto pelos assassinatos de Marielle e Anderson, caracterizadas pela multiplicidade de apropriações do evento praticadas pelas diversas militâncias identitárias pós-modernas. Relegando a segundo plano a luta da falecida vereadora contra a violência policial, tais militâncias se apressaram em converte-la em ícone das demandas das mulheres, dos negros, dos favelados, das lésbicas, dos bissexuais, das mães solteiras e por ae afora. Até mesmo os manifestantes lullistas pretenderam associar o que alegam ser a perseguição a lulla aos assassinatos como se ambos eventos fizessem parte de um mesmo “golpe”. Ou seja, tais manifestações apenas aparentemente são de massa porque revelam a profunda divisão que existe entre os que delas participam. Além de divididos os manifestantes fazem questão de explicitar seu antagonismo aos demais, uma vez que a excludente e insular categoria do “lugar-de-fala” pregada pela militância identitária neoliberal a serviço do rentismo internacional pressupõem o monopólio do protagonismo por cada fração – minúscula como possa ser – na reivindicação do sentido político dos assassinatos. Dae a hostilidade, senão condenação, aos manifestantes que pretendem protagonizar os protestos em se tratando de indivíduos não-negros, moradores das regiões centrais, heterossexuais, cisgeneros, lullistas, etc. Neste caso temos uma multidão que é só aparente porque se trata na verdade de um conjunto de militâncias não apenas profundamente divididas mas hostis umas às outras e entre si msms. Com base nos dois exemplos citados pode-se elencar os novos tipos de manifestação popular do contexto atual: 1) manifestação com perfil militante definido mas sem propósito concreto; 2) manifestação que aparenta ser coletiva mas que na verdade é tão heterogênea que de evento de massa conserva só a aparência e seu sentido último pode ser, no limite, a confrontação entre seus participantes. É duvidoso que se possa contar com qualquer uma delas para se provocar qq mudança relevante. Pode ser que estejamos presenciando não apenas o fim da multidão como propôs Mike Davis (1990) mas também o fim do povo brasileiro enquanto possibilidade histórica, aquele que noutros tempos teria tornado possível as maiores manifestações de massa da história recente, como foram as da campanha em prol de eleições diretas-já (1984). A crise segue se aprofundando e é duvidoso, tomando como exemplo os dois tipos de manifestações citadas, que se possa contar com o protagonismo popular para definir seu desfecho. A possibilidade histórica de uma solução conservadora, senão reacionária, para a crise só aumenta, devendo os precedentes históricos de 1990 e 1964 serem tomados como base para reflexão.

Dennison de Oliveira

Nenhum comentário: