domingo, 1 de outubro de 2017

EL LABERINTO


Zeus no podría desatar las redes
de piedra que me cercan. He olvidado
los hombres que antes fui; sigo el odiado
camino de monótonas paredes
que és mi destino.

Rectas galerías
que se curvan en círculos secretos
al cabo de los años. Parapetos
que ha agrietado la usura de los días.

En el pálido polvo he descifrado
rastros que temo. El aire me ha traído
en las cóncavas tardes un bramido
o el eco de un bramido desolado.

Sé que en la sombra hay Otro, cuya suerte
es fatigar las largas soledades
que tejen y destejen este Hades
y ansiar mi sangre y devorar mi muerte.

Nos buscamos los dos. Ojalá fuera
éste el último día de la espera.

JORGE LUIS BORGES 

CASA ARRUMADA

  
A vida é muito mais do que isso...
"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência
egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos
também a felicidade."

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.


Carlos Drummond de Andrade
Osip Mandelshtam

Roubaste-me os mares, da corrida, do voo.
Mas me deu o fulcro da sua terra violenta.
Então, o que é que conseguiu? Doce ironia do destino:
Também tentou tirar a língua, mas falhou.

(1935 de maio de 1935, a partir do caderno de voronezh, escrito no exílio. )

Traduzido do russo por Philip Nikolayev

O que as melhores escolas públicas têm em comum


As escolas públicas com melhor desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são as federais e as militares. Também entram neste grupo algumas escolas técnicas estaduais, como a ETESP em São Paulo. O que essas escolas têm em comum é pouco explorado no atual debate sobre o ensino médio (até mesmo porque aqueles que têm mais propriedade sobre o assunto, os professores do ensino básico, são excluídos do debate). São três coisas que essas escolas possuem em comum: elas são autarquias, seus professores possuem autonomia pedagógica e a remuneração destes profissionais são justas. Vou tentar mostrar aqui que a ausência destas três coisas é o maior problema do ensino básico brasileiro.
Ano passado, uma das salas em que eu lecionava tinha mais de 40 alunos. É comum uma sala com mais de 40 alunos nas escolas públicas estaduais. Mas essa especificamente era frequentada por uma quantidade enorme de alunos indisciplinados. Considerando também o enorme degaste que era trabalhar nesta turma (para alunos e professores), o resultado foi uma aprendizagem ruim. Era consenso entre professores, equipe pedagógica, pais e os próprios alunos que o melhor era dividir a sala. Após uma reunião com os pais, fizemos um pedido à Secretaria de Educação do Estado (PR) para dividir a turma. A resposta foi negativa. Entraves burocráticos como esse na administração de uma escola não se reduz à questões pedagógicas. Os entraves se estendem à logística, à manutenção física e ao departamento pessoal. Já o grupo das melhores, são autarquias. Elas possuem autonomia administrativa, e estão livres de vários entraves burocráticos que prejudicam a escola. Até autonomia para fazer prova para seleção de alunos elas possuem. Em qualquer boa instituição pública no mundo, o grau de autonomia administrativa é muito maior que o da maioria das escolas estaduais no Brasil. Isso por uma razão simples: quem melhor sabe o que deve ser feito é quem está no dia a dia da administração. Mesmo que muitas vezes toma-se medidas equivocadas, as chances de quem está de fora errar é muito maior. O resultado está aí para todos verem. A maior parte das escolas públicas do Brasil não são autarquias e são ruins.
A autonomia pedagógica dos professores também é bem maior no grupo das melhores. Até mesmo nos colégios militares, diferente do que se pensa, a autoridade do professor (autor da aula) é respeitada. Nestas escolas, o respeito à capacidade profissional do professor e ao fato dos professores serem os autores da aula oferece muito mais condições de ensino. É o professor que mais tem contato com o aluno no tratamento do conteúdo apresentado. Assim, é ele que tem mais propriedade para apontar as dificuldades de aprendizado dos alunos e propor as medidas adequadas para garantir o aprendizado do conteúdo. Mas, atualmente, é quem está fora da sala de aula que mais dita as ações a serem tomadas. Na maioria das escolas estaduais, pais, pedagogos e direção pressionam muito em relação as ações a serem tomadas. Nos pressionam sobre a maneira como as provas devem ser feitas, sobre a quantidade de avaliações a serem feitas (há escolas que exigem até seis avaliações bimestrais) e sobre o que deve ser feito com aluno indisciplinado e agressor. Neste último caso, mais precisamente, nos pressionam a não fazer nada. Pois tomar medidas disciplinares dá trabalho. É muito importante para qualquer profissional a orientação de colegas. Mas não é isso que acontece. O que acontece é pressão mesmo. Pressão de quem não tem a capacidade devida, de quem quer evitar trabalho e de quem não vê outra coisa além de sua ideologia pedagógica - vou dar nome aos bois: a ideologia que o professor é um opressor.
Quer queira ou não, uma remuneração justa também é uma característica das boas escolas. O salário base em início de carreira no grupo das melhores, para 40h de trabalho, fica em torno de 3.400 à 5.000 reais. Nas escolas públicas estaduais, a média é de aproximadamente 2.700 reais. Essa média chega a este valor por que alguns Estados, como MT, MS e DF, pagam por volta de 3.800. Mas a maioria dos estados pagam abaixo da média. No grupo das melhores, além disso, há o reconhecimento financeiro devido de mestrado e de doutorado e também há vale-alimentação. No caso das escolas estaduais, em alguns Estados não há pagamento de vale-alimentação, como também não há reconhecimento financeiro de mestrado e de doutorado, como é o caso do Paraná, onde leciono (aqui há um mestrado reconhecido que é oferecido pelo Estado. Mas é preciso esperar uma década em média para conseguir vaga. Se fez mestrado em outro lugar, na UFPR, por exemplo, não é reconhecido). Para além da obviedade de que uma remuneração justa é importante para qualquer trabalho, chamo a atenção para o nível de profissional que ela atrai. Salário bons atraem melhores profissionais e salários ruins espantam os melhores profissionais. Há mais duas questões relacionadas ao salário que são importantes. Primeiro, o grupo das melhores concedem mais horas-atividades (tempo para preparar aulas, fazer e corrigir avaliações e etc.) que a maioria das escolas estaduais. Há estados que nem cumprem o mínimo exigido por lei, que é 33% de hora-atividade. O que significa que boa parte do trabalho é de graça. Segundo, a garantia de 40h de trabalho nas escolas estaduais é parcial. A maioria dos concursos públicos são para 20h. Isso provoca a cada ano um corre corre para conseguir aulas, e alcançar as 40h, sendo comum não conseguir.
Vale lembrar mais uma vez, que tais pontos são ignorados nas discussões e nas medidas políticas sobre o ensino básico, inclusive na atual reforma do ensino médio proposta pelo Governo Federal. No horizonte, até podem ter em contas essas ideias, mas com o interesse repugnante de entregar, depois de precarizar de vez, para as ONGs que atualmente ditam o ensino básico brasileiro e esta reforma do ensino médio (Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann, Fundação Itaú Social e Movimento Todos pela Educação).

Thiago Melo



Crítica Autônoma

Por que algumas pessoas insistem que uma ideia filosófica depende muito da biografia do filósofo?


Muitos professores de filosofia insistem que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos que as conceberam. No entanto, a justificação desta insistência não apresentam. Esta falta de justificativa é a primeira pista para entender a posição que tomam.
Quando não apresentamos justificativas de nossas posições, as pessoas interessadas no assunto vão procurar pontos que possam justificar as posições apresentadas. Fazemos uma retrospectiva da memória que temos da pessoa. Sua história pessoal, as relações que tivemos com ela, se for o caso, o tipo de trabalho que faz etc. Aí, se, por exemplo, a pessoa defende a liberação do uso de drogas, levamos em conta se ele é um usuário, se ela em algum outro momento conversou sobre o assunto, se ela é de esquerda etc. Enfim, procuramos razões para ela defender a ideia que defende na sua biografia. É isso que um historiador da filosofia faz quando filósofos não apresentam razões ou boas razões para as ideias que defende: ele vai procurar na biografia do filósofo. Não é por acaso, portanto, que os professores que mais insistem na importância da biografia de um filósofo são aqueles que estudam ideias filosóficas que não são bem justificadas.
Seguindo esta linha, constatamos que as pessoas que sustentam que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos dão como já dado definitivamente que as ideias filosóficas são subjetivas. Isso significa que as ideias filosóficas dependem muito do sujeito que as concebem. Se alguém defende que a definição de conhecimento é X, ela defende isso devido, fortemente ou exclusivamente, a seus interesses pessoais. Assim, as ideias filosóficas, antes de ser sobre o mundo, são sobre as pessoas que as concebem. Por exemplo, Platão defendeu que a definição de conhecimento é X porque é desejo dele que a definição seja essa, não porque ela de fato é essa. Nessa situação, faz todo sentido considerar a biografia de um filósofo como indispensável para entender suas ideias.
Já com relação às ideias de outras áreas de conhecimento, pensam que são objetivas ou possuem graus de objetividade que as filosóficas não possuem. Por isso, não veem dificuldades em ensinar e analisar uma ideia da física ou da matemática independente da biografia do autor.
O problema é que não é definitiva ainda a posição de que as ideias filosóficas são subjetivas e as ideias das ciências naturais e da matemática são objetivas. Este é um problema filosófico em aberto. Muitos filósofos, inclusive eu, defendem que as ideias filosóficas são mais objetivas. Outros são céticos, ou seja, não tomam posição sobre o assunto. Enfim, a resposta para este problema ainda está sendo investigada. E não há uma resposta definitiva ainda.
No mínimo, portanto, as razões que um subjetivista filosófico tem para considerar a biografia de um filósofo são as mesmas que um objetivista ou um cético tem para não considerar. Caso o subjetivista ache que ele tem razões melhores, é preciso apresentar. Apenas expressar uma posição é expor uma mera opinião. E acho que há consenso de que o ensino de filosofia não é o ensino de meras opiniões. Pois seria a disseminação de preconceitos, de ideias sem a devida avaliação crítica.
Thiago Melo

Crítica Autônoma


Por que argumentos circulares são falaciosos?


Uma das maiores dificuldades que enfrentei em sala de aula foi a de convencer os alunos que a falácia da circularidade em argumentos é mesmo uma falácia. Por mais exemplos que você use para mostrar que tais raciocínios não funcionam, sempre ainda fica a dúvida de saber onde está o erro. Os alunos questionam: “E daí? Ainda sim é uma justificativa”. Isso acontece porque nós professores pressupomos que os alunos conseguem reconhecer diretamente que a circularidade argumentativa é um erro - por isso, nos contentamos com exemplos. Mas nem nós professores conseguimos reconhecer diretamente. Para reconhecer a circularidade argumentativa, precisamos dos conceitos de cogência e de justificação última.
A falácia da circularidade acontece quando procuramos justificar uma ideia com outra de mesma força cognitiva. Por exemplo, a proposição “Todos os acontecimentos naturais são regulares” possui a mesma força cognitiva que a proposição “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares. Veja a formulação de um argumento envolvendo estas ideias:
 Observamos que os acontecimentos naturais são regulares.
 Logo, todos acontecimentos naturais são regulares.
O que justifica a ideia “Os acontecimentos naturais são regulares” não pode ser a ideia “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares”. Isso decorre do fato de que a observação que os acontecimentos naturais são regulares não garante que os acontecimentos são regulares. Pode acontecer de nossa observação ser falha. Podemos falhar, por exemplo, em não constatar que a regularidade vale para alguns acontecimentos naturais e não vale para outros. Nesse caso, não se segue que todos os acontecimentos naturais são regulares. Só alguns são regulares. Aí, não podemos nos convencer da verdade da ideia que usamos para justificar, isto é, da verdade da premissa. Tal fato envolve os dois conceitos já mencionados: cogência e justificação última.
Em raciocínios cogentes, pretendemos justificar a conclusão com base nas premissas. Isso significa que as premissas devem ser mais confiáveis ou mais fortes do que a conclusão, já que é a partir das premissas que procuro garantir a verdade da conclusão. Isso acontecendo, o argumento é cogente. Se a premissa não for mais confiável do que a conclusão, não conseguimos garantir por meio do argumento a verdade da conclusão. No raciocínio formulado acima, a ideia expressa na premissa possui a mesma força cognitiva da ideia expressa na conclusão. Logo, não consegue-se garantir a verdade da conclusão através da premissa. As duas ideias precisam igualmente de uma justificação para acreditar na verdade delas.
No fim das contas, a circularidade é uma falácia porque a premissa não é uma justificativa última, ainda permanece a necessidade de mais uma justificação. No exemplo que estou usando, ainda permanece a dúvida de saber o que justifica a ideia de que os acontecimentos naturais são regulares. Isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre sua função de justificar* a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa* para a conclusão, mas não há.
*Comentando sobre este texto no Facebook, Desidério Murcho me lembrou de um ponto muito importante para este assunto. É o da distinção entre justificação e justificação adequada. Como disse ele, “Uma justificação má é ainda uma justificação”. No entanto, não é uma justificação adequada. Os argumentos circulares possuem justificação mas não justificação adequada. Então, aproveito para corrigir o final do texto: isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre a função de justificar adequadamente a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa adequada para a conclusão, mas não há.

Thiago Melo

Crítica Autônoma



A misoginia, as minorias e o desrespeito


O número de pessoas que vejo indignadas com o desrespeito às mulheres, aos negros e as demais chamadas minorias vem crescendo. Isso poderia ser uma grande notícia. Mas a quantidade destas mesmas pessoas que também desrespeitam está aumentando. Percebo através de jornais, redes sociais e meu convívio social. Vejo pessoas indignadas com o machismo e elas próprias não respeitam o professor, o colega de trabalho, o colega de sala, o que está em posição social diferente, aquele que pensa diferente etc. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que reafirmam seus preconceitos também aumentam. O número de pessoas que reafirmam o machismo, por exemplo, está aumentando.
A explicação para isso está no respeito seletivo. Não dá para escolher as pessoas que você quer respeitar. Muito menos, se você escolhe não respeitar alguém simplesmente por essa pessoa estar fazendo seu trabalho, como é o caso de desrespeito a professores. Isso porque quando o respeito ao próximo vira algo arbitrário, o grupo maior vai ganhar. Se existe mais machistas que feministas, os machistas vão ganhar. E não se pode depois alegar injustiça, pois o respeito foi consensualmente arbitrário. Ambos os lados aceitaram respeitar quem eles acham que deve. Aí ninguém pode determinar quem deve ser respeitado, a não ser o grupo maior ou mais forte.
Você esperneando ou não, o mundo nem sempre segue as nossas normas. Muito menos, se não conseguimos convencer a maioria. E escolhendo quem vamos respeitar, não conseguiremos. Não abra mão de respeitar o próximo. Esse caminho é mais seguro para o respeito a todos os tipos de pessoas.


Thiago Melo

Crítica Autônoma

Cortella e Karnal sobre ética



Circula há algum tempo na internet um vídeo em que Mário Sérgio Cortella fala sobre ética, e intitulam o vídeo como sendo uma definição de ética. O que ele diz é muito mais uma posição ética do que uma definição de ética. Ética (ou filosofia moral) é a investigação sobre as normas para que uma ação seja correta. Quando Cortella diz que ética é “um conjunto de princípios e valores sobre o que eu devo, posso e quero” ele já está dando uma reposta ao problema de saber o que é certo fazer. Pois ele admite que há princípios (existe filósofos que discordam) e admite que é o equilíbrio entre as normas, a liberdade e a vontade. Isso vai além da mera definição da área de conhecimento.
Recentemente, Leandro Karnal disse que ética é respeitar a todos, não só quem tem poder. Isso também já é uma resposta ao problema. Há teorias éticas que não aceitam isso.
O trabalho filosófico em ética consiste também em fazer o que Cortella e Karnal estão tentando fazer. Mas é importante ter essas considerações que fiz em mente porque a ética é uma área em aberto, não tendo ainda uma resposta definitiva sobre seu problema principal: o que é uma ação correta?


Thiago Melo

Crítica Autônoma
"Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário."
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- Edgar Morin


A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA AO MERCADO


Comemorar a queda do desemprego porque a ocupação informal aumentou seria semelhante a interpretar como um fato positivo a diminuição da fome no mundo se ela decorresse do aumento do número de mortes dos famintos. É dizer que a morte de miseráveis aumenta a prosperidade no mundo porque diminui o número de miseráveis. Ora, a taxa de desemprego diminui quando as pessoas vão para informalidade simplesmente porque elas deixam de fazer parte da estatística dos desempregados. São pessoas que desistiram de procurar emprego e estão lutando pela sobrevivência no mercado informal. Alardear isso positivamente, como estão fazendo os analistas econômicos da grande imprensa, é servir a dois mestres ao mesmo tempo: a falsidade e a perversidade.

Ulysses Ferraz


O ABC DO NEOLIBERALISMO


Neoliberalismo é quando os ricos transferem livremente suas riquezas para onde se pagam menos impostos, aplicam seus recursos onde os juros são mais elevados e deslocam seus empreendimentos para onde haja o mínimo de direitos trabalhistas e sociais. E vivem em qualquer lugar do mundo que assim o desejarem, cercados de muros, bens luxuosos e aparatos de segurança privada. São os habitantes das muralhas maravilhosas.
Enquanto isso, o resto da população trabalha para subsistir, sobreviver e consumir as sobras do mundo afluente. Endividam-se para ter o mínimo de conforto material e vivem onde é possível viver, cercados de insegurança pública. Quando pacíficos, os excluídos são abandonados. Quando violentos, são encarcerados. Um Estado mínimo garantido por presídios de segurança máxima. Austeridades sociais em meio a prodigalidades armamentistas.
Os neoliberais e seus aliados conspiram incansavelmente pelo desmantelamento das redes de proteção social, amparados por suas tropas de elite espalhadas pelas casas legislativas. Suas indústrias bélicas são amplamente representadas em seus interesses nos parlamentos e legalmente blindadas pelos poderes judiciários. Os bancos de investimentos são suas fortalezas mais sólidas. Jamais se acanham em se utilizar largamente das instituições democráticas em benefício próprio.
E para disseminar suas ideologias, os poderosos do capital e seus representantes corporativos cercam-se de acadêmicos vencedores do prêmio Nobel, de políticos pretensamente defensores da social-democracia e de porta-vozes midiáticos dos principais meios de comunicação. Mediante o mágico efeito da dominação simbólica, o neoliberalismo faz com que dominantes e dominados lutem por um mesmo ideal. É a globalização da ideologia. Uma distopia real. Aqui e agora. Essa é a verdadeira contrarrevolução do final século XX, cujos efeitos ainda reverberam incólumes em pleno século XXI.


Ulysses Ferraz

Sobre a delação e a recusa


​​​Por Pedro Tierra*

Pertenço a uma geração que viu não poucos companheiros de luta voltarem das sessões de interrogatórios deformados pela brutalidade dos espancamentos para não entregar um ponto de encontro, uma informação, um documento. Para não delatar. Para não trair. Alguns simplesmente, não voltaram. Pagaram com a morte seu silêncio. A delação era a ignomínia. A condenação ao ostracismo, à exclusão de qualquer ambiente de convívio social. A morte civil.
Muito já se escreveu sobre a traição e os traidores. A literatura é abundante sobre esse gesto humano ignóbil, particularmente nas disputas pelo poder. Da bíblia aos gregos, de Dante a Shakespeare. Ainda que momentaneamente saudada por quem dela se beneficiou, a traição não perde seu caráter repulsivo, mesmo para eles. É indelével e permanecerá para sempre na face do traidor. Nas suas relações futuras, todos se lembrarão dele. E dela. E apontarão o estigma, quando for conveniente.
A História, tampouco, poupa os traidores. O nascimento das nações resultou, em geral, de partos sangrentos. Em que a forca e os fuzilamentos não foram economizados, de parte a parte. De quem oprimia e de quem contra a opressão se levantava. Países que conseguiram constituir-se como nações, com território, língua, cultura, com um destino comum construído pela vontade majoritária dos seus nacionais reservam aos traidores as penas mais severas.
De uma prática considerada repulsiva, a delação converteu-se, no Brasil do golpe, em moeda corrente, manipulada pelo Estado e pela mídia, diante do silêncio e, não se enganem, do desprezo da sociedade. Temos assistido com o estômago embrulhado a um espetáculo que a cada dia nos surpreende pela desfaçatez e o cinismo.
O Instituto da Delação Premiada é um singelo exercício institucional em que o traidor vende ao Judiciário o relato que melhor lhe convém sobre o crime que cometeu. E recebe, em troca, benefícios compatíveis com a avaliação que faz o Juiz do peso social e político da personalidade traída, com vista aos objetivos que ele, Juiz, deseja alcançar.
Não chega a ser surpreendente o rápido processo de desmoralização e degeneração de um mecanismo dessa natureza que se utiliza de um comércio entre o tratador e os répteis que se dispõem a mentir, a rastejar pela migalha de um favor, de um benefício pessoal, de uma redução de pena ao oferecer aos acusadores a cabeça de eventuais cúmplices, agora desafetos, não se escusando à esperteza de furtar a delação mais suculenta de algum ex-sócio.
Não cabe a comparação, por indevida, entre quem foi despedaçado física e moralmente pela Ditadura Militar e, eventualmente, fraquejou e esses escroques docemente constrangidos a delatar, a mentir, em troca da promessa de usufruir das relações e da fortuna que amealharam de forma criminosa.
Há fatos que lançam sobre o passado sua luz, elucidam circunstâncias e conferem a eles um novo significado. Nos últimos dias estivemos diante de fatos dessa natureza. Duas declarações emitidas por dois importantes personagens da República: a primeira, prestada diante do juiz da 13ª Vara de Curitiba. Perguntado pela defesa do Presidente Lula: “O Doutor Sérgio Mouro fez uma pergunta sobre se o senhor tratava de contribuições paralelas, não contabilizadas, caixa 2. O senhor fez uma afirmação aqui muito clara, eu nunca tratei. Então eu pergunto, o senhor hoje muda a versão por conta da sua delação premiada”? Resposta – “ Eu não tenho um acordo de delação premiada. – “O senhor tem uma negociação em curso”. –“Existem tratativas. Isso é um assunto que está a cargo dos meus advogados, eu confio no trabalho deles, são advogados de alta qualificação, com experiência no setor, e confio que eles estejam fazendo o melhor, dentro da lei, olhando maneiras de contribuir com a justiça, que é a minha vontade, e maneiras de obter benefícios, que também é a minha vontade”. Transferir aos advogados a responsabilidade pela decisão não anula o fato concreto de delatar. De negar a declaração anterior “Eu nunca tratei” para atender aos objetivos do interrogador. A que versão se deve dar crédito? Esse é o problema do delator. Será perseguido pela declaração anterior. Porque o compromisso não é com os fatos – já que não foi, afinal, oferecida nenhuma prova além de sua própria palavra –, o compromisso é com o “tratador”.
O corolário desta declaração que circulou há poucos dias na forma de carta-renúncia à condição de filiado ao Partido dos Trabalhadores, representa um esforço malsucedido de emprestar dignidade à desonra. O essencial, o que ficará, é o comércio que se operou entre o tratador e os répteis que a ele sucumbiram. Esse comércio enfeixa todo o significado simbólico do gesto do delator. Em alguns meses os beneficiados deitarão ao fogo a memória desses fatos e seus personagens e a converterão em cinzas. Eles perderão a serventia.
Para conforto de seus novos amigos ele, por sua parte, assegura que vai se empenhar a partir de agora, convertido à virtude, pensando mais em sua família do que no partido, em defender a verdade. Não escapará da armadilha que preparou para si mesmo: estará defendendo sua verdade particular ao lado da plutocracia que um dia combateu.
A segunda circulou pela imprensa convencional e pelas redes sociais: “Só luta por uma causa, quem tem valor. Os que brigam por interesse têm preço. Não que não me custe dor, sofrimento, medo e, às vezes pânico. Mas prefiro morrer que rastejar e perder a dignidade”. Dias depois dessa declaração o dirigente político que
a proferiu foi condenado a 30 anos de prisão. E afirmou estar feliz pela absolvição de um companheiro de processo.
A síntese exprime uma aguda consciência da natureza de classe do conflito em que se debate o país e a escolha de um homem maduro, provado nas múltiplas circunstâncias históricas que enfrentou. Soube conduzir e vencer batalhas. Sabe entender as derrotas que sofreu. Mas sabe também que o sonho que construímos ao longo da vida só nos abandona quando dormimos.
Definitivamente, o processo que envenena o Brasil e que resultou no golpe de 2016, cujo propósito principal é nos devolver à humilhante condição de neocolônia fornecedora de produtos primários, despe as disputas políticas das vestimentas hipócritas do discurso moral que dominou a cena pública do país nos últimos anos. São o que são: escolhas políticas.
Neste momento da história assistimos, com as variações determinadas pelas condicionantes econômicas, sociais e culturais de cada país, o capitalismo se despedir de sua mais vistosa invenção política: a Democracia Liberal. Ela deixou de ser funcional para a acumulação. As instâncias convencionais da ação política foram esvaziadas, os sindicatos, os partidos, os parlamentos. E substituídas pelos comitês executivos das grandes corporações. No caso brasileiro a hipertrofia dos órgãos de controle e a condição de poder tutelar sobre os demais poderes assumida pelo judiciário gerou as condições para um golpe de estado capaz de, em alguns meses, fazer da Carta de 88 uma Constituição bastarda. Liquidado o capítulo dos Direitos Sociais que justificava seu título de “Constituição Cidadã”.
As petroleiras, os bancos, o agronegócio, o monopólio da mídia, contam entre os 3% da sociedade que apoiam o governo ilegítimo de Michel Temer. E têm força suficiente para mantê-lo no poder até que cumpra o desmonte cabal do projeto democrático-popular representado por Lula e pelo Partido dos Trabalhadores. Os autores das declarações de que tratei aqui serão julgados, num futuro que espero seja breve, pela integridade com que se conduziram diante das escolhas políticas que fizeram.

*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.


"O sentimento despertado pela música instrumental é original, não imitado, ele é totalmente diferente do sentimento refletido, da empatia, mediante a qual o espectador, ouvinte ou leitor se coloca na posição daquele que sofre, está triste ou alegre etc. É a 'música mesma' que é alegre, serena ou melancólica, é ela que tem um 'temperamento próprio', que não imita o estado de alma específico de ninguém, mas é 'a angústia mesma feito coisa', como dirá Sartre muito tempo depois; é ela que absorve inteiramente e transforma a mente que lhe é receptiva, colocando-a no mesmo humor, no mesmo estado de espírito, no mesmo registro de sentimento e temperamento em que está composta."

(SUZUKI, Márcio. "O senso do belo e a máquina do mundo". In: A forma e o sentimento do mundo: jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII. São Paulo: Editora 34; FAPESP, 2014. p.285)
"Perder uma guerra, mesmo que seja uma batalha cultural, não faz bem ao organismo: eu era uma pessoa mais amável, antes de as nossas universidades se renderem a um suposto bem social e passarem a selecionar textos de leitura com base em origem racial, gênero, preferência sexual e filiações étnicas de Novos Autores, do passado e do presente, sem levar em conta o fato de eles saberem ou não escrever."
(BLOOM, Harold. "John Milton e o 'Paraíso perdido'". In: MILTON, John. Paraíso perdido. edição bilingue: tradução, posfácio e notas de Daniel Jonas; apresentação de Harold Bloom; ilustrações de Gustav Doré. São Paulo: Editora 34, 2015. p.10)


"Em pé, na frente da sala de aula, ensinando aos meus alunos da escola fundamental os fatos básicos da nossa língua, da vida, do mundo, descobri que, ao mesmo tempo, ensinava a mim mesmo tudo de novo -- filtrado através dos olhos e mentes dessas crianças. Realizada da maneira certa, era uma experiência restauradora. Até mesmo, profunda."

(MURAKAMI, Haruki. "Minha querida Sputnik". tradução Ana Luiza Dantas Borges. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p.67)
"Numa palavra, a vida humana é mais governada pelo acaso do que pela razão, deve ser encarada mais como um enfadonho passa-tempo do que como uma ocupação séria, e é mais influenciada pelo temperamento de cada um do que por princípios de ordem geral."
(HUME, David. "O cético". In: Ensaios morais, políticos e literários. trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D'Oliveira. Editora Nova Cultural: São Paulo, 2004. p. 191)


"E vocês atiram porque são a Revolução. Mas a Revolução é alegria. E a alegria não gosta de ter órfãos pela casa. O homem bom faz boas obras. A Revolução é uma boa obra de homens bons. Mas homens bons não matam. Então, quer dizer que quem faz a Revolução são os homens maus."

(BÁBEL, Isaac. "O Exército de Cavalaria". tradução e apresentação Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. posfácio: Boris Schnaiderman e Otto Maria Carpeaux. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 57.)
"Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase cego, levantou-se da cadeira e ficou em pé, tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Finalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças disse: 'Das Gefül für Humanität, hat mich noch nicht verlassen'. Os dois homens comoveram-se até as lágrimas. Pois, embora a palavra 'Humanität' apresentasse, no século XVIII, um significado quase igual a polidez ou civilidade, tinha, para Kant, uma significação muito mais profunda, que as circunstâncias do momento serviram para enfatizar: a trágica e orgulhosa consciência no homem de princípios por ele mesmo aprovados e auto-impostos, contrastando com sua total sujeição à doença, à decadência, e a tudo o que implica o termo 'mortalidade'."

(PANOFSKY, Erwin. "Significado nas artes visuais". tr. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 19-20)
"Como era terrível para ele quando surgia de repente em seu espírito a imagem viva e clara do destino humano e de seu significado, e quando entrevia num lampejo um paralelo entre aquele significado e sua própria vida, quando dentro de sua cabeça se derramavam, umas sobre as outras, várias questões vitais, e rodavam, em desordem, de modo atemorizante, como pássaros despertados por um raio repentino de sol, numa ruína adormecida."

(GONTCHARÓV, Ivan Aleksándrovitch. "Oblómov". tr. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 143.)
"Mas é sua pretensão à universalidade o que especifica, em todos os casos, o juízo de valor estético. Observou-o Kant e é, de fato, o ponto de partida de sua reflexão: quando emito determinado juízo, não posso deixar de reivindicar para ele a objetividade e deixar de pensar que deve ser por todos subscrito. Por certo, também posso pronunciar juízos subjetivos, em primeira pessoa, ao dizer, por exemplo: 'gosto desta obra' ou 'prefiro isto ou aquilo'; mas, nessas circunstâncias, tenho consciência de exprimir apenas meus gostos e, afinal, de julgar a partir de mim mesmo mais do que do objeto. Portanto, distingo claramente entre juízo objetivo e juízo subjetivo; e talvez seja necessário estar de má fé ou ser ingênuo por excesso de sutileza para sustentar um relativismo total e afirmar que todo juízo estético é irredutivelmente subjetivo."


(DUFRENNE, Mikel. "Estética e Filosofia". tr. Roberto Figurelli. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 36)